Retrato Da Dor Constante
Lucas Carvalho
Um novo dia, uma nova tormenta. Era assim desde sempre. Todos os dias eram de extremo sofrimento e repressão. Todos os dias eram de dor. Acordava cedo de novo e olhava-se no espelho com a esperança de ser diferente lá fora enquanto procurava roupas menos chamativas, quem sabe até masculinas. Saía antes das 05h00 para não dar de cara com os vizinhos. Iria batalhar por um emprego, um emprego justo.
Era assim desde sempre. Havia estudado até os 16 quando teve de se aceitar, pois até então, havia escondido até mesmo de si quem era, negando a própria imagem. Infelizmente, era assim desde sempre, desde pequena quando era feminina, quando era excluída das rodas de brincadeira, quando queria brincar de boneca e vestir-se como a mãe. Seus pais foram chamados diversas vezes na escola, pois aquele tipo de comportamento não era aceitável. Ele era um garoto. Aparentemente, um garoto. Tinha de ser garoto. Obrigatoriamente, um garoto.
– “Obrigatoriamente, um garoto”. Era isso que ouvia de seu pai, de sua mãe, de si mesmo e, por consequência, não teve muito tempo para não ser garoto. Seu mundo era o masculino por essência, mas a sua existência indicava para outro lado. Era assim desde sempre: via-se como uma bússola descompassada, um pouco errante, um pouco amaldiçoada. E não sabia como ajustá-la no caminho certo, pois estava sozinho. Sozinha, melhor dizendo.
Em certa idade, contou aos pais – com certa esperança –, pois a angustiante dor que tomava conta de sua alma não pudera mais ser reprimida. Era sua hora, tinha de ser. Mas não podia. De repente, a esperança transformara-se numa pilha de nãos desapontados, olhares repressores e abandonos inexplicáveis. Saiu de casa, deixou os estudos. Sequer terminara o Ensino Médio. Queria ser, mas tinha de ser sozinha. Era assim desde sempre.
Quando conhecera o mundo, na essência da palavra, passou a ver como não lhe era dada a possibilidade de exercer sua persona. Era diferente. Mais diferente que outras pessoas, até mesmo as mais diferentes. Era visto como o resto. Era visto como um peso para as pessoas, como um grande erro. Desde então, nunca mais vira os pais, nunca mais estudara, nunca mais fora, pois quando era, tornava-se motivo de risadas e até mesmo escárnio. Era assim desde sempre.
Porém, um momento de grande euforia, encheu o peito de coragem e decidiu se transformar, mostrar quem era sem medo, com o apoio de poucos amigos verdadeiros que fizera ali e que a acolheram. Transitou de um eu retorcido para um eu verdadeiro, ainda um pouco retorcido, pois a carga psicológica daquela mudança não era tão simples quanto parecia.
Agora era, mas ainda faltava. Faltava uma vida de verdade: não queria passar os dias preso naquele apartamento pequeno – que dividia com duas amigas – como se fosse um pássaro engaiolado. Por esse motivo, saía todos os dias em busca de um emprego, de oportunidades. Mas os pressupostos morais que carregavam os homens eram cruéis: o preconceito e a violência a tiravam de órbita e a colocavam num patamar de nada. Era assim desde sempre. O mundo reservara um pequeno espaço de conotação sexual para pessoas como ela. O mundo parecia pequeno demais para ela, alguém que precisava de tanto espaço. Foi assim desde sempre.
Infelizmente, amigos, essa é a dura vida de quem tem de enfrentar o mundo, incluindo si mesmo, desde cedo. A dura vida de quem precisa “não ser” para ser. A dura vida de quem vive sozinha. Essa é a vida de Camila Godói, Verônica Bolina, Laura Vermont, todas violentadas e abusadas. Essa é a vida das mulheres transexuais no Brasil. Uma realidade que mata e que precisa ser mudada urgentemente.